terça-feira, 23 de setembro de 2014

A operação-abafa da mídia e os truques estatísticos da SABESP na crise da água

A operação-abafa da mídia e os truques estatísticos da SABESP na crise da água

, GGN

"Por mais que talvez o tema soe redundante, pareceu necessário abordar a crise da água  novamente em face da inacreditável matéria apresentada hoje pelo jornal SPTV (e publicada no site do G1: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/09/cantareira-tera-107-mais-de-agua-com-uso-da-2-cota-do-volume-morto.html). Talvez o termo soe pesado, mas a gravidade da questão e a forma com que ela foi abordada quase nos permitiriam classificar a reportagem como criminosa. Na verdade, ela é um registro interessante de uma espécie de “operação-abafa” que ocorreu ontem, a partir de uma “joint-venture” entre a grande imprensa e a SABESP, após termos tido uma coleção de notícias negativas sobre o futuro da crise hídrica (sendo aquela do Estadão, sobre os problemas de captação do volume morto no Jaguari possivelmente a mais grave delas).

Procedeu-se, então, ao final da tarde, a uma contra-resposta ensaiada, bem sintetizada no vídeo do link: em todos os grandes portais, apareceu com grande destaque a manchete de que o Sistema Cantareira “ganhará” mais dez pontos percentuais a partir da captação da segunda cota do volume morto. Curiosamente, nada é informado em boa parte das matérias sobre:
  1. a não-autorização por parte da ANA para a realização de tais captações (apenas as obras foram autorizadas);
  2. a existência de problemas operacionais para a captação desses volumes, conforme os apontados nos artigos de ontem;
  3. a eventual ponderação crítica de especialistas, ou a oportunidade de manifestação do dissenso.
Na verdade, o tom das matérias é o de apresentação, em clima de absoluta tranquilidade, de uma situação crítica. O repórter, por sinal, assegura que a segunda cota só será utilizada “se necessário”. Difícil encontrar qualquer diferença entre o enunciado na fala do jornalista e no press release da SABESP (que sequer é necessário que seja apresentado, dada a coincidência das posturas da mídia e do órgão público). Curiosamente, enfim, a falta de transparência da companhia de abastecimento é tamanha que é possível encontrar, em um único aspecto mais controverso, três versões diferentes. No caso, me refiro às obras para a construção das instalações para a extração da segunda cota:
  1. as obras começaram apenas na semana passada, sem prazo para conclusão (reportagem do G1 de sexta-feira);
  2. as obras estão quase prontas, e serão entregues no começo de Outubro (matéria do SPTV, acima);
  3. as obras já estão prontas (matéria da Folha).
Além disso, repetem as mesmas inverdades de sempre:
  1. Apresentam o contingente de 2 milhões de cidadãos que recebiam água do Cantareira e que agora são abastecidos por outros sistemas - o correto é 1,6 milhão, já que o aumento do apoio do Guarapiranga está consideravelmente atrasado;
  2. Colocam o bônus como um fator fundamental de sucesso para se evitar o racionamento, sendo que ele responde por menos de 30% de toda a redução da vazão do sistema, conforme dados da própria SABESP.
Vale mencionar, ainda, toda a confusão que cometem a respeito da quantidade de água disponível, e do quanto passará a sê-lo após a nova captação, caso seja possível. Na matéria do SPTV, cometem o erro de afirmar que ainda há 80 bilhões de litros da primeira cota, dando a ilusão, ao cidadão, de que os 106 bilhões que entrarão demorarão, também, 4 meses para serem consumidos - o problema é que perdemos quase 200 bilhões de litros nesse período desde o começo da extração da primeira parcela do volume morto. Tudo é colocado de uma forma adequada para tranquilizar o cidadão, para lhe mostrar que a situação está sob controle e que, até mesmo, o Governo de São Paulo está adiantado com relação aos problemas em questão. Uma pintura surrealista da realidade. Quem lê o artigo que publiquei ontem e assiste ao vídeo que está linkado acima acha que se tratam de mundos ou momentos históricos absolutamente distintos. Mas são apenas duas leituras sobre uma mesma realidade.
A questão mais simbólica, a meu ver, é a estratégia de contabilizar esses cerca de 10 pontos percentuais da segunda cota do volume morto como “favas contadas” do volume operacional atual. Trata-se de uma ilusão de “conforto” que é absolutamente contraproducente para o contexto atual, mas que é, por evidente, bastante útil no cenário eleitoral. Entendo que essa lógica tem a sua parcela de culpa na determinação da dramática crise atual. O mesmo raciocínio, de certa forma, foi adotado em 2004, quando ocorreu a renovação da outorga - que aumentou a vazão a ser retirada do Sistema e ainda ampliou em mais de 200 bilhões de litros o volume operacional. A SABESP, à época, ampliou sua “capacidade de produção de água” sem ter gasto um centavo a mais para tanto, e ainda assumiu a ilusão de que havia mais água à disposição - quando os reservatórios eram os mesmos. E isso quando, logo antes, o Cantareira tinha alcançado inacreditáveis 0,6% de capacidade de água.
O que vivemos, desde então, é uma realidade na qual alguém com sobrepeso recebe uma calça 3 números maior e um cinto com 5 novos furos como saída para sua crescente obesidade. Essa mentalidade consolidou a arrogante percepção de que a natureza estava ali, grátis, e de que, mesmo na escassez relativa, gozávamos de uma abundância hídrica em 2013. Essa falta de sensibilidade, parcialmente, gerou o incrível gap no timing de resposta da SABESP à crise, nos mostrando o quanto o governo subestimou o problema e o quanto, portanto, não estava à sua altura, gerencialmente falando. Apenas para que tenham uma ideia, compartilho o gráfico abaixo:
Comparação de Níveis do Sistema Cantareira, de acordo com o Método Adotado
Comparação de Níveis do Sistema Cantareira com SABESP de Alckmin

Sim, é exatamente isso. A situação absolutamente excepcional, de um ponto de vista operacional, vivenciada em fins de 2003, tornou-se uma porcentagem tolerável após a renovação da outorga em Agosto de 2004: passou de praticamente 0 para mais de 18%. Agora, a operação se repete, e por duas vezes, em um período curtíssimo. Os 8,2% de capacidade experienciados em Maio, que corresponderiam a -18,7% de volume útil se levássemos em conta os parâmetros de 2004, se tornam 26,7% a partir da adição da primeira cota de volume morto. O tempo passa, a situação piora significativamente, mas a tecnologia "contábil" continua a prosperar: os 8% de 22 de Setembro já foram antecipados pela mídia para 18,7% (conforme os valores em negrito, equivalentes ao momento atual). Acreditem, ou não, esse valor positivo corresponderia, se estivéssemos em 2004, a quase -44% (peço perdão pela "heresia" dos negativos em percentuais de volume útil, mas a realidade seria essa). E, mesmo se levarmos em conta o parâmetro de 2014 sem a primeira manobra da SABESP, veremos que estamos, hoje, com quase -13% de capacidade útil. Se cogitarmos o uso total de toda essa segunda cota, então, chegaríamos, finalmente, ao "zero absoluto" de acordo com as manobras atuais, que significariam, simplesmente, -71% de acordo com os parâmetros de 2004. Não é preciso perder longas linhas sobre o quanto esses valores nos ensinam a respeito da dimensão do problema que estamos enfrentando.  É uma espécie de "espetáculo do crescimento virtual", a qual, longe de nos levar ao desenvolvimento, nos traga, com o perdão do trocadilho, para o fundo do poço.
Quisesse a SABESP ser didática, de forma a apresentar ao cidadão um percentual de uso do sistema que não fosse simplesmente negativo, teria ela seguido a metodologia - trivial - assumida pela ANA, na qual simplesmente o volume morto seria adicionado tanto no numerador (como montante disponível) como no denominador (como parte do montante total). Mas nem essa solução (que apresentaria percentuais menores de água disponível ao longo do tempo, o que poderia deixar o cidadão "em apuros"), a qual nem reputo como a mais interessante (tendo-se em vista a necessidade de se expor a gravidade do problema como uma forma de conscientização), teve a empresa pública o condão de adotar.
Alguns podem achar que não, mas essas contínuas reapropriações e reinterpretações, que causam tanta desinformação, acabam por reescrever a história. Graças ao papel da mídia, rapidamente se desconectam de sua origem, de seu passado, e se naturalizam. Até o fim da semana, estaremos reproduzindo, talvez, que o volume do Cantareira estará caindo para "18 e alguma coisa". O volume morto, que amplia a capacidade do sistema tal qual um capital especulativo, nos lega uma pedagogia da (falsa) opulência hídrica. Que sejamos capazes de nos livrar dela, das narrativas hegemônicas - e apaziguadoras - da mídia, para que consigamos manter a criticidade necessária para entendermos o fenômeno com a agudeza que lhe é necessária."

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