Sergio Reis, GGN
"Por
mais que talvez o tema soe redundante, pareceu necessário abordar a
crise da água novamente em face da inacreditável matéria apresentada
hoje pelo jornal SPTV (e publicada no site do G1: http://g1.globo.com/sao-paulo/ noticia/2014/09/cantareira- tera-107-mais-de-agua-com-uso- da-2-cota-do-volume-morto.html ).
Talvez o termo soe pesado, mas a gravidade da questão e a forma com que
ela foi abordada quase nos permitiriam classificar a reportagem como
criminosa. Na verdade, ela é um registro interessante de uma espécie de
“operação-abafa” que ocorreu ontem, a partir de uma “joint-venture”
entre a grande imprensa e a SABESP, após termos tido uma coleção de
notícias negativas sobre o futuro da crise hídrica (sendo aquela do
Estadão, sobre os problemas de captação do volume morto no Jaguari
possivelmente a mais grave delas).
Procedeu-se,
então, ao final da tarde, a uma contra-resposta ensaiada, bem
sintetizada no vídeo do link: em todos os grandes portais, apareceu com
grande destaque a manchete de que o Sistema Cantareira “ganhará” mais
dez pontos percentuais a partir da captação da segunda cota do volume
morto. Curiosamente, nada é informado em boa parte das matérias sobre:
-
a não-autorização por parte da ANA para a realização de tais captações (apenas as obras foram autorizadas);
-
a existência de problemas operacionais para a captação desses volumes, conforme os apontados nos artigos de ontem;
-
a eventual ponderação crítica de especialistas, ou a oportunidade de manifestação do dissenso.
Na
verdade, o tom das matérias é o de apresentação, em clima de absoluta
tranquilidade, de uma situação crítica. O repórter, por sinal, assegura
que a segunda cota só será utilizada “se necessário”. Difícil encontrar
qualquer diferença entre o enunciado na fala do jornalista e no press
release da SABESP (que sequer é necessário que seja apresentado, dada a
coincidência das posturas da mídia e do órgão público). Curiosamente,
enfim, a falta de transparência da companhia de abastecimento é tamanha
que é possível encontrar, em um único aspecto mais controverso, três
versões diferentes. No caso, me refiro às obras para a construção das
instalações para a extração da segunda cota:
-
as obras começaram apenas na semana passada, sem prazo para conclusão (reportagem do G1 de sexta-feira);
-
as obras estão quase prontas, e serão entregues no começo de Outubro (matéria do SPTV, acima);
-
as obras já estão prontas (matéria da Folha).
Além disso, repetem as mesmas inverdades de sempre:
-
Apresentam o contingente de 2 milhões de cidadãos que recebiam água do Cantareira e que agora são abastecidos por outros sistemas - o correto é 1,6 milhão, já que o aumento do apoio do Guarapiranga está consideravelmente atrasado;
-
Colocam o bônus como um fator fundamental de sucesso para se evitar o racionamento, sendo que ele responde por menos de 30% de toda a redução da vazão do sistema, conforme dados da própria SABESP.
Vale
mencionar, ainda, toda a confusão que cometem a respeito da quantidade
de água disponível, e do quanto passará a sê-lo após a nova captação,
caso seja possível. Na matéria do SPTV, cometem o erro de afirmar que
ainda há 80 bilhões de litros da primeira cota, dando a ilusão, ao
cidadão, de que os 106 bilhões que entrarão demorarão, também, 4 meses
para serem consumidos - o problema é que perdemos quase 200 bilhões de
litros nesse período desde o começo da extração da primeira parcela do
volume morto. Tudo é colocado de uma forma adequada para tranquilizar o
cidadão, para lhe mostrar que a situação está sob controle e que, até
mesmo, o Governo de São Paulo está adiantado com relação aos problemas
em questão. Uma pintura surrealista da realidade. Quem lê o artigo que
publiquei ontem e assiste ao vídeo que está linkado acima acha que se
tratam de mundos ou momentos históricos absolutamente distintos. Mas são
apenas duas leituras sobre uma mesma realidade.
A
questão mais simbólica, a meu ver, é a estratégia de contabilizar esses
cerca de 10 pontos percentuais da segunda cota do volume morto como
“favas contadas” do volume operacional atual. Trata-se de uma ilusão de
“conforto” que é absolutamente contraproducente para o contexto atual,
mas que é, por evidente, bastante útil no cenário eleitoral. Entendo que
essa lógica tem a sua parcela de culpa na determinação da dramática
crise atual. O mesmo raciocínio, de certa forma, foi adotado em 2004,
quando ocorreu a renovação da outorga - que aumentou a vazão a ser
retirada do Sistema e ainda ampliou em mais de 200 bilhões de litros o
volume operacional. A SABESP, à época, ampliou sua “capacidade de
produção de água” sem ter gasto um centavo a mais para tanto, e ainda
assumiu a ilusão de que havia mais água à disposição - quando os
reservatórios eram os mesmos. E isso quando, logo antes, o Cantareira
tinha alcançado inacreditáveis 0,6% de capacidade de água.
O
que vivemos, desde então, é uma realidade na qual alguém com sobrepeso
recebe uma calça 3 números maior e um cinto com 5 novos furos como saída
para sua crescente obesidade. Essa mentalidade consolidou a arrogante
percepção de que a natureza estava ali, grátis, e de que, mesmo na
escassez relativa, gozávamos de uma abundância hídrica em 2013. Essa
falta de sensibilidade, parcialmente, gerou o incrível gap no timing de
resposta da SABESP à crise, nos mostrando o quanto o governo subestimou o
problema e o quanto, portanto, não estava à sua altura, gerencialmente
falando. Apenas para que tenham uma ideia, compartilho o gráfico abaixo:
Comparação de Níveis do Sistema Cantareira, de acordo com o Método Adotado
Sim,
é exatamente isso. A situação absolutamente excepcional, de um ponto de
vista operacional, vivenciada em fins de 2003, tornou-se uma
porcentagem tolerável após a renovação da outorga em Agosto de 2004:
passou de praticamente 0 para mais de 18%. Agora, a operação se repete, e
por duas vezes, em um período curtíssimo. Os 8,2% de capacidade
experienciados em Maio, que corresponderiam a -18,7% de volume útil se
levássemos em conta os parâmetros de 2004, se tornam 26,7% a partir da
adição da primeira cota de volume morto. O tempo passa, a situação piora
significativamente, mas a tecnologia "contábil" continua a prosperar:
os 8% de 22 de Setembro já foram antecipados pela mídia para 18,7%
(conforme os valores em negrito, equivalentes ao momento atual).
Acreditem, ou não, esse valor positivo corresponderia, se estivéssemos
em 2004, a quase -44% (peço perdão pela "heresia" dos negativos em
percentuais de volume útil, mas a realidade seria essa). E, mesmo se
levarmos em conta o parâmetro de 2014 sem a primeira manobra da SABESP,
veremos que estamos, hoje, com quase -13% de capacidade útil. Se
cogitarmos o uso total de toda essa segunda cota, então, chegaríamos,
finalmente, ao "zero absoluto" de acordo com as manobras atuais, que
significariam, simplesmente, -71% de acordo com os parâmetros de 2004.
Não é preciso perder longas linhas sobre o quanto esses valores nos
ensinam a respeito da dimensão do problema que estamos enfrentando. É
uma espécie de "espetáculo do crescimento virtual", a qual, longe de nos
levar ao desenvolvimento, nos traga, com o perdão do trocadilho, para o
fundo do poço.
Quisesse
a SABESP ser didática, de forma a apresentar ao cidadão um percentual
de uso do sistema que não fosse simplesmente negativo, teria ela seguido
a metodologia - trivial - assumida pela ANA, na qual simplesmente o
volume morto seria adicionado tanto no numerador (como montante
disponível) como no denominador (como parte do montante total). Mas nem
essa solução (que apresentaria percentuais menores de água disponível ao
longo do tempo, o que poderia deixar o cidadão "em apuros"), a qual nem
reputo como a mais interessante (tendo-se em vista a necessidade de se
expor a gravidade do problema como uma forma de conscientização), teve a
empresa pública o condão de adotar.
Alguns
podem achar que não, mas essas contínuas reapropriações e
reinterpretações, que causam tanta desinformação, acabam por reescrever a
história. Graças ao papel da mídia, rapidamente se desconectam de sua
origem, de seu passado, e se naturalizam. Até o fim da semana, estaremos
reproduzindo, talvez, que o volume do Cantareira estará caindo para "18
e alguma coisa". O volume morto, que amplia a capacidade do sistema tal
qual um capital especulativo, nos lega uma pedagogia da (falsa)
opulência hídrica. Que sejamos capazes de nos livrar dela, das
narrativas hegemônicas - e apaziguadoras - da mídia, para que consigamos
manter a criticidade necessária para entendermos o fenômeno com a
agudeza que lhe é necessária."
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